O ano ainda não acabou, mas duvido que algo impactante aconteça, ou melhor, que algo impactante gere mudanças.
Oxford elegeu a palavra "brain rot" como o vocábulo do ano. "Brain rot" significa "cérebro apodrecido" ou "atrofia cerebral" e foi escolhida para expressar a sensação de que a mente está sendo prejudicada pelo consumo excessivo de conteúdo online.
Eu elejo a expressão “nada mudou” como a imagem do ano. Passamos uma pandemia, grandes conflitos mundiais estão aí, o hype da Inteligência Artificial, a política brasileira ladeira abaixo, o consumo de lixo cultural e virtual só aumenta e… nada mudou. Por isso digo que, mesmo que algo impactante aconteça nesse final de ano nenhuma mudança ocorrerá em 2024.
Mas vamos a minha retrospectiva de filmes, séries, músicas e livros do ano, lembrando que resumo aqui o que consumi em 2024, não necessariamente que foi lançado no ano em questão. Principalmente em livros, só li um lançamento, Intermezzo, onde Sally Rooney perdeu um pouco a mão. Depois de me empolgar com a literatura e música produzida na Irlanda, o país não me conquistou neste ano, só numa série.
O ano foi o acordar de dois caras que estão na ativa há bastante tempo e que gosto muito, Wim Wenders no cinema e Robert Smith, ou the Cure, na música. Depois de longo tempo produzindo obras menores em relação ao seu auge, os dois retornaram magistralmente. Ah, também li um livro da Han Kang em 2024, antes de ela receber o Nobel de literatura. Eu, que sempre fujo do hype, da euforia da moda, consegui me antecipar a ele.
Vamos lá então, filmes que vi neste ano.
Zona de Interesse, de Jonathan Glazer. Filme necessário, trata da tal da “banalização do mal”, do antissemitismo que está aflorando sob argumentos ideológicos equivocados. De como algumas pessoas “estão apenas fazendo a sua parte”, Calligaris retrata bem este comportamento no seu livro “O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social”. Além da mensagem, a obra, como cinema e atuações, é perfeita.
Anatomia de uma Queda, de Justine Triet. Filme de tribunal. A protagonista, mesma atriz do filme Zona de Interesse, está perfeita. Detalhe aleatório, a atriz que faz papel de tutora do menino é vocalista da banda Savages, girl band de pós punk.
Perfect Days, Wim Wenders. É um dos diretores que mais gosto, meus filmes favoritos estão no final dos 70 e início dos 80, depois veio uma fase que não fechou muito com meu gosto. Submersão, deste século, é legal, mas Perfect Days é Wim Wenders clássico. Imagens que falam mais que mil palavras e trazem mil sentimentos. A música como personagem, isto é Wim Wenders.
Past Lives, Celine Song. Até que ponto podemos nos separar daquilo que éramos, ou que imaginávamos ser o nosso mundo ou destino. Mesmo optando por outro caminho, algumas escolhas, não feitas, parecem inevitáveis.
Filmes que não indico.
Poor Things, Yorgos Lanthimos. Não gosto de obras com tons burlescos, caricatos, extremados visualmente e nas atuações. Filmes que “causam” e atraem determinado tipo de espectador, ou hipsters, ou… bem, nevermind.
Saltburn, Emerald Fennell. Mantenha distância, filme pretensioso, atuações canastronas, chocar por chocar, sem motivo. Gostaria de poder “desver” este filme.
Séries
Olhei, pela terceira vez, as oito temporadas do Dr House. As novas temporadas de O Urso, Slow Horses, O silo, Falando a Real. Todas muito boas.
O que vi de novidade.
Disclaimer. Muito bem falada, com boas atuações, mas não gostei tanto assim. Como alguns maneirismos nas movimentações de câmara. Atitudes e respostas inflacionadas em relação a um julgamento moral, querendo criticar a cultura do cancelamento, mas de forma forçada e com uma reviravolta meio, sei lá, não precisava ter chegado a este ponto, meio fora da realidade.
Dark Matter. Boa Ficção científica, bem-produzida, mas fica a sensação de faltar um tempero para ficar ótima. Séries devem ser feitas com início meio e fim, seja com uma temporada ou dez, mas aquelas que deixam um gancho para ver se não são canceladas normalmente ficam devendo.
Bad Sisters. Uma das melhores e irlandesa. Humor negro, sarcástica, irônica. Com um dos melhores vilões do ano, capaz de criar os piores sentimentos no espectador.
Acima de Qualquer Suspeita. Uma reviravolta a cada episódio, suspeita trocando de alvo a cada momento, boa trama e desenvolvimento.
Livros
Foi o ano que mais li. Aproveitei para reler “O Apanhador no Campo de Centeio” em tradução atualizada. A dúvida: Para onde vão os patos do central park no inverno? Continua. Minha teoria que este livro só é capaz de ressonar em homens também continua.
Alguns livros de autores relacionados a música, cinema. Infelizmente poucos autores gaúchos, afinal sou um bairrista e deveria manter a credibilidade de tal alcunha.
Good Pop, Bad Pop, Jarvis Cocker. Como já falei, fujo do hype. Enquanto o mundo ouvia Nirvana e outros grunges, eu preferia o outro lado do Atlântico e escutava britpop. Não tanto Oasis e Blur e sim aquele britpop menos hypado, pelo menos por aqui. Bandas menos conhecidas, Supergrass, Divine Comedy, Suede e Pulp a banda do Jarvis. No livro ele relembra as referências que fizeram do Pulp uma banda com aquele ar cool cafona.
Dois livros lidos em sequência. O "Exílio e o reino", 6 contos de Albert Camus e "Stoner" de John Williams.
Stoner poderia ser um conto extra do livro de Camus, tivesse o estilo do argelino e tamanho menor.
O exílio, do título de Camus, é tema recorrente nos seus textos existencialistas; a solidão, o não se sentir parte de algo, um exilado da realidade. Já o reino seria uma espécie de redenção, pelo descaso, pela indignação, pela raiva.
Stoner tem o distanciamento, o não encaixe, a solidão não expressa como exílio e sua redenção vem em ondas, ora por alegria, ora por confronto de um lado e resignação de outro.
História da sua vida e outros contos, Ted Chiang. Contos de ficção científica, um deles é a base para o filme A Chegada, motivo da minha leitura. O conto foca mais na linguagem dos alienígenas e o poder do seu “idioma” do que o filme.
Música
Sempre é complicado encaixar músicas em um ano, mas vamos lá.
Songs of a Lost World, the Cure. Assim como Wim Wenders voltou a ser WW, the Cure voltou a ser the Cure, os dois nas suas melhores versões. Lá se vão 37 anos quando vi Robert Smith e sua turma ao vivo, em duas noites seguidas, no auge. O album, as músicas, densos, profundos, sem preocupação com tamanho das canções ou se a voz só vai entrar depois da metade da música. Fazia tempo que não escutava um disco inteiro, em sequência e sem interrupções. Quando falo de disco profundo é quase como mergulhar em águas abissais, é necessário subir aos poucos das profundezas para a descompressão.
Lambrini Girls. Pra não dizer que vivo no século passado, banda recente, punk com pitadas do movimento Riot grrrl. Vocal sem amarras e sotaque britânico. A década passada e esta tem trazido boas bandas, com energia e urgência sem frescuras em produção, sentimentos em estado bruto sem muitas lapidações, vide IDLES e Amyl and the Sniffers.
IDLES saiu com disco novo, de punk old school foram para o pós-punk clássico e agora para algo mais soturno. Preferia a fase inicial.
Fontaines DC. Como falei, os irlandeses (A escritora Sally Rooney também) não atenderam minhas expectativas. O disco apresenta um peso e algo de soturno que mostra uma velha armadilha de bandas. Muito tempo longe de casa, possivelmente álcool e drogas que interferem no processo criativo. Tem quem goste, eu prefiro o lado pós punk oitentista do início.
Alguns lançamentos legais, mas nada de parar o trânsito, Fazerdaze, Courteeners e só um single da minha banda russa preferida, Motorama.
Algumas coisas que não estão no meu gosto e podem queimar meu filme como Refused, pelo seu impacto na série O Urso, ou música techno como Pontapé após a leitura do livro Bate Estaca do Camilo Rocha.
E eu, como bom bairrista, escutei a banda gaúcha Isotopxs, mistura de pancadão com Atari Teenage Riot e Rage Against Machine até a música Empina o Fusil figurar nas mais escutadas em 2024.
Como falei, a expressão que elejo para 2024 é; Nada Mudou. Pandemia, guerras, conflitos, afloramento de sentimentos aparentemente adormecidos retornaram, e todo mundo parece apático, falam muito agem pouco.
Como dizem, se colocar um sapo em uma panela com água e ir aumentando a temperatura aos poucos ele morrerá cozido. Ele só “pulará” se estiver em um lugar frio e ir para o quente. A impressão é que estamos sendo cozidos e não fazemos nada e quando fazem, são trapalhadas e busca de caminhos piores. Nos vemos em 2025, se eu não estiver cozido até lá.
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Nada vai mudar, até o mundo acabar.
Abração.
"Desver" é bom!
Por vezes até importante seria.